A Jornada de Aretuza

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Capítulo 1

Meu nome é Alissa Henson e sou feiticeira.

Eu me apresento como cortesia, mas a verdade é: a intenção não é que alguém leia estas palavras além de mim mesma. Porém, se você não sou eu e está lendo, provavelmente eu deveria dizer por que as escrevo, para começo de conversa.

Tudo começou com algo que minha tia, Aurora Henson, uma vez me disse:

“Em algum momento da sua vida, você refletirá sobre sua jornada até então e será compelida a lembrar do passado. Para aqueles com a nossa longevidade, esse sentimento é um tanto inevitável e certamente surgirá mais de uma vez. Portanto, escute meu conselho: faça anotações ao longo do caminho, o máximo possível.”

E, vejam só, parece que minha querida tia estava certa. Ou talvez a simples sugestão de tais coisas foi algum tipo de profecia autorrealizável, uma semente plantada muito tempo antes por alguém muito mais sábio que eu. Teria eu esse impulso incômodo de recontar meu passado se não tivesse passado tantos anos documentando-o cuidadosamente? Pareceria um desperdício, não é? Se sim, encontro-me agradecendo à minha tia mesmo assim, pois encontrei muito conforto no processo terapêutico de autorreflexão durante os anos. Ainda encontro.

É claro, não preciso lembrar, pois anotei tudo o tempo inteiro. Mas preciso me lembrar da primeira vez em que ela me disse essas palavras. Estávamos sentadas numa carruagem, percorrendo uma estrada tediosamente longa e cheia de solavancos para a ilha Thanedd, onde eu me tornaria, como minha tia, uma feiticeira de Aretuza. Acho difícil colocar em palavras a empolgação que percorria minhas veias durante a viagem, mas, se tivesse que escolher uma só, acho que “eletrizante” seria adequada. Veja bem, eu sabia que seria uma maga, bem, desde que consigo me lembrar. Diferentemente de muitos que encontram seu caminho nos corredores ilustres de Aretuza — e Ban Ard —, eu fui destinada a isso. Pelo menos, foi o que me disseram minha tia e sua querida amiga Agnes — que fora para mim quase uma tia enquanto eu crescia, mas um pouco mais distante. Saber que seria uma feiticeira significava que eu passara boa parte da juventude ansiosa pelo dia em que isso aconteceria. E, sendo uma criança impaciente como era, achei a espera uma provação torturante, à beira do tormento. Para minha tristeza, tia Aurora com frequência me garantia que a chance de Aretuza aceitar uma criança era absolutamente zero, não importava o quanto essa criança implorasse. o que, pensando agora, era algo justo.

Passei boa parte da juventude fantasiando a mim mesma como feiticeira — com um chapéu pontudo, um manto ilustre esvoaçante e uma varinha estendida numa pose de ataque — apesar de, mesmo quando criança, saber que não era essa a aparência de uma feiticeira. Eu sabia disso porque já passara muito tempo em volta de magas, pois Aurora sempre me levava consigo quando saía de Gors Velen para visitar colegas e conhecidos. Conheci até os membros fundadores do Capítulo do Dom e da Arte antes mesmo de caminhar ou falar. E isso, como constantemente me garantiam, era um privilégio raro.

Na verdade, foi quando tive meu primeiro “evento condutor”, como é frequentemente chamado — quando uma criança demonstra pela primeira uma afinidade pela magia. Pessoalmente, não me lembro dos detalhes, mas ouvi essa história muitas vezes durante a infância. Depois de todos esses anos, ainda me via sorrindo, alegre ao pensar em Herbert Stammelford debatendo-se histérico, tentando tirar o esterco de cavalo do manto. “Medonho! Medonho!”, gritou ele, dizem. No entanto, ainda me sinto ofendida pela alegação dele de que eu meramente usara as mãos para jogar o cocô nele, recusando-se a acreditar que uma criança da minha idade — “E uma garota, imagine!” — fosse capaz de uma habilidade de telecinesia tão potente. Na última vez em que o encontrei, ele alegou ter esquecido completamente o evento e questionou se realmente tinha acontecido. Acho que ele ainda estava constrangido.

De qualquer forma, no dia em que viajamos pela primeira vez para Aretuza naquela carroça horrível, eu tinha onze anos, o que, ainda tenho orgulho de me gabar, era relativamente pouca idade para uma adepta. (Ainda não entendo totalmente por que não podíamos ter simplesmente usado o portal, apesar de provavelmente existir alguma lição sobre paciência na viagem. Minha tia adorava a tutelagem, tanto dentro como fora da sala de aula.) Eu vira a escola muitas vezes antes de longe, mas nunca tivera permissão de visitá-la. Tia Aurora assumira uma postura muito firme sobre o assunto, frequentemente respondendo às minhas súplicas com um “quando estiver pronta, criança” bem calmo e autoritário. Portanto, eu tinha de ficar na residência próxima em Gors Velen enquanto ela ensinava. Por sorte, contudo, eu ainda podia olhar ansiosa para a escola do outro lado da baía. Olhando para trás, isso provavelmente foi mais uma maldição do que uma bênção, pois não serviu para nada além de aumentar as chamas da minha impaciência.

Agora, depois de todos esses anos, senti uma nostalgia muito grande ao olhar para as palavras que eu escrevera tanto tempo antes. As primeiras palavras que escrevi depois do conselho de Aurora, na verdade, rabiscadas num pedaço de pergaminho quando nossa carruagem parou do lado de fora de Aretuza:

“Estou aqui. Finalmente estou aqui! É o melhor momento da minha vida!”

Lembro-me de ter pulado da carruagem e ficado parada, maravilhada, diante da escola, com os olhos arregalados e a boca aberta. Naquele momento, eu tinha certeza — mais do que tivera sobre qualquer outra coisa na vida — de que me tornar feiticeira de Aretuza era a única coisa que queria no mundo inteiro.

É engraçado como as coisas mudam.

Capítulo 2

Para aqueles que não tiveram a sorte de ver Aretuza e a ilha onde fica, peço que procurem uma oportunidade de o fazer. É um lugar lindo, por dentro e por fora. Entretanto, a não ser que você tenha um negócio importante ou conhecidos influentes, receio que a maior parte do complexo permanecerá um mistério. Os visitantes, e até mesmo os clientes, são frequentemente restritos a Loxia, que é o nível mais baixo da ilha. Ainda assim, mesmo as vistas de Gors Velen são espetaculares e, num dia claro, é possível ver toda a ilha de Thanedd, com o bloco gigante de pedra do palácio de Garstang, cujo corpo parece esculpido na rocha sobre o qual ele repousa, coroado por cúpulas douradas que brilham sob o sol; a torre solitária de Tor Lara (a “Torre da Gaivota”) que se eleva muito acima do cabo e cujo topo geralmente se perde entre as nuvens; e, claro, Aretuza propriamente dita. O cenário é pitoresco, para dizer o mínimo.

Ainda fico maravilhada com toda a sua beleza. Naquela época, porém, a admiração que senti foi simplesmente esmagadora.

Meu primeiro dia em Aretuza, como escrevi então, foi uma ocasião maravilhosa! A empolgação que eu alimentara por tantos anos borbulhou até a superfície. Sorri de forma incontrolável, saltei como se fosse um gafanhoto feliz e fiz muitas, mas muitas perguntas. Eu queria desesperadamente não parecer uma criança tonta, mas não consegui me conter. Por sorte, acho que as outras garotas estavam ocupadas demais com o próprio comportamento para perceberem o meu.

Entretanto, como acontecia com frequência, meu entusiasmo — ou o excesso dele — logo se dissipou. Minha criação me dera um certo nível de familiaridade com os fundamentos da magia. Portanto, sem que fosse culpa da escola, achei as primeiras lições particularmente simples e, detesto admitir, um tanto chatas, mas entendo que era assim que deveria ser. Eu tinha que acompanhar. Minha tia deixara muito claro que eu não deveria receber nenhum tratamento especial em nenhuma circunstância, pois não queria que os outros alunos achassem que havia nepotismo. E, na verdade, nem eu.

No entanto, apesar das tediosas aulas introdutórias, gostei bastante de discutir magia e de praticá-la com as outras adeptas. Era empolgante testemunhar o espanto daquelas ainda não familiarizadas com os fundamentos do Poder que passariam a vida inteira tentando dominar. Pelo menos, quem conseguia passar...

Havia sete de nós “iniciadas” no começo, mas uma não passou nos exames de admissão. Foi-me dito que isso era triste, mas esperado, pois nem todas que tinham um evento condutor exprimiam a aptidão correta para magia. Até hoje, ainda não entendo completamente como os testes avaliavam nossas capacidades, pois não tinham nenhuma relação tangível com o uso de magia nem com o conhecimento da prática. Eles consistiam principalmente na avaliação de formas, padrões e elementos, juntamente com uma rodada de perguntas sobre temas um tanto peculiares e, de certa forma, aleatórios. Desde minha indução, os exames de admissão mudaram muitas vezes, normalmente quando uma nova diretora assume o cargo. E as iterações posteriores certamente tinham um senso mais prático. Ainda assim, passei nos testes e era tudo o que importava na época. (Ah, que constrangimento seria se a sobrinha de Aurora Henson, a Criança de Magia extraordinária e talentosa, tivesse sido reprovada nos exames de admissão. A vergonha teria realmente sido demais para aguentar.)

No começo, como mencionei, havia apenas algumas adeptas, portanto dividíamos muita das lições com as alunas mais velhas. Foi durante uma dessas aulas que conheci a garota mais gentil que tive o prazer de chamar de amiga. O nome dela era Kalena. Ela estava no quarto ano e gostei dela imediatamente. Apesar de ela não ser a mais brilhante — na verdade, longe disso —, era amigável, divertida e atenciosa, além de me fazer sentir bem-vinda. Ela era exatamente o que eu precisava de uma companhia e sou eternamente grata por tê-la conhecido.

Se o universo está em estado constante de equilíbrio, como dizem alguns estudiosos, faz sentido que, no dia em que fiz uma amiga, também fiz uma inimiga. O nome dela era Yanna, membro da primeira turma de Aretuza. Isso significava que ela já se formara e, de vez em quando, ajudava a ensinar as alunas mais jovens. Receio que apenas palavras não fariam justiça ao descrever a extensão do ódio que eu tinha por ela e suas aulas: eram simplesmente horríveis. Por motivos então desconhecidos para mim, ela usava toda e qualquer oportunidade para me ridicularizar e desprezar na frente das outras adeptas. O erro mais simples, até mesmo uma opinião diferente, rapidamente se transformava numa bronca mordaz sobre minhas capacidades sem brilho ou, no pior dos dias, alguma forma de punição monótona, como lavar os banheiros.

Eu desprezava Yanna, mas, infelizmente, tinha de aguentar suas aulas, pois havia poucas professoras oficiais, ou “Senhoras”, em Aretuza. Na verdade, eram apenas quatro, cada uma especializada no próprio elemento primário: Água, Ar, Terra e Fogo. Veja bem, era — e ainda é — amplamente aceito que uma jovem maga dominará apenas um dos elementos, se é que conseguirá realizar esse feito — muitas não conseguem. Até o momento, houve apenas um feiticeiro no mundo que se sabia que dominara todos os quatro elementos. O nome dele era Jan Bekker.

E, na época, eu queria desesperadamente ser a segunda.

Capítulo 3

Nos primeiros meses de escola, a maioria das lições era ministrada por Aurora. Adeptos mais jovens raramente viam as outras professoras, pois os respectivos elementos eram considerados avançados demais para iniciantes. Veja bem, minha tia era a Senhora da Água residente. A Água é amplamente considerada como o elemento mais seguro e, portanto, o primeiro em que as feiticeiras devem ser proficientes.

Da hidromancia à manipulação da mente, passamos a maior parte do primeiro período mergulhadas no elemento Água, mapeando seus muitos usos benéficos e aprendendo a teoria e detalhes meticulosos e complexos. Foi um trabalho árduo, como se pode imaginar — estar tão perto de usar magia, mas restrita pelos grilhões do currículo. A mundanidade das aulas introdutórias agora se misturou numa lembrança difusa, mas ainda consigo me lembrar do nosso primeiro exercício.

Fazia pouco tempo que tínhamos aprendido sobre os veios de água que corriam sob o solo. Praticamente em todos os lugares. Esses veios e suas interseções correspondentes eram uma das fontes mais acessíveis de Poder que os magos podiam usar e, portanto, um ponto inicial ideal para quem era inexperiente. Para nossa primeira prática, fomos desafiadas a recuperar um cristal mágico de dentro das cavernas sob Aretuza. Escondidos no fundo do labirinto subterrâneo, eles tinham sido colocados sobre a fonte mais intensa de Poder nos arredores, e era lá que estava o desafio: tínhamos de localizar os veios mais potentes e segui-los até o local secreto. Uma tarefa relativamente simples.

Pelo menos, foi o que pensei.

Por sorte, não precisamos entrar naquelas passagens escuras e úmidas de mãos vazias. Cada uma tinha permissão de levar um só item para ajudar na tarefa. A maioria das garotas, devido à ignorância, optou por levar uma varinha de água. Era uma escolha óbvia em princípio, mas um momento de consideração sobre a praticidade de tal objeto expunha seu problema. As varinhas de água conseguem identificar interseções com bastante facilidade, mas não conseguem distinguir a intensidade da fonte. Em suma: dentro de um labirinto de interseções, elas eram praticamente inúteis.

Decidi ser nada convencional na minha seleção e optei por levar o Maroto, um gato malhado gorducho. Apesar de viver em Aretuza, ninguém reclamara ser seu dono e ele era considerado, de forma um tanto carinhosa, o mascote da escola durante sua vida — que, se lembro bem, era impossivelmente longa. Eu o escolhi porque, como a maioria dos gatos, ele conseguia sentir as fontes de Poder. Além do mais, dizia-se que ele gostava de dormir nas interseções. O Maroto costumava desaparecer por horas, até mesmo dias, de cada vez e voltava com uma aura delicada envolvendo-o. Eu sempre me perguntara aonde ele ia para absorver o Poder e deduzi que provavelmente ia dormir no coração do complexo sob a escola, sem dúvida onde os cristais estavam escondidos. Pelo menos, valia a pena tentar. (Observação: ninguém sabe como nem por que os gatos absorvem magia. É algo que deixou perplexas até mesmo as mentes dos feiticeiros mais curiosos durante séculos e é um dos grandes mistérios do nosso tempo.)

E, vejam só, meu plano funcionou.

Por muito pouco...

Passei horas andando atrás do gato enquanto ele passeava pelas cavernas sem nenhum desejo evidente de chegar a nenhum lugar específico. Com frequência, ele parava e se deitava sem motivo, começava a se limpar ou batia numa pedrinha aleatória que chamara sua atenção. No entanto, o maio problema, algo que eu realmente deveria ter previsto, era a abundância de pragas que viviam nas cavernas. Toda vez que algum roedor saía correndo de algum canto ou fenda, o Maroto saía correndo atrás dele. Lembro-me de ter desejado uma varinha de água em algum momento quando meu amigo peludo desapareceu numa passagem estreita em perseguição a um rato gordo e não voltou por quase meia hora.

Depois do que pareceram dias, Maroto finalmente me levou à câmara secreta. Ainda assim, não era a vitória que eu queria tão desesperadamente. Havia apenas dois cristais restantes, o que significava que eu era a penúltima aluna a encontrá-los. Fiquei muito chateada. E, apesar de não ter me apressado a sair das cavernas, logo descobri que minha situação poderia ter sido pior. Muito pior.

Pois, veja bem, o último cristal nunca foi recuperado.

Zoriyka, uma das alunas mais velhas e mais brilhantes do nosso ano, não voltou da rede de passagens subterrâneas. Foi-nos dito que isso era comum e acontecia com uma ou duas alunas todos os anos, mas que sempre, mais cedo ou mais tarde, elas encontravam o caminho para a superfície. Entretanto, chegou o crepúsculo e ainda não havia sinais de Zoriyka.

Naquela noite, Nina Fioravanti, a Senhora da Terra, liderou um pequeno grupo de busca composto de algumas adeptas mais velhas. Elas estavam estudando as cavernas como parte das aulas de arqueologia e, portanto, estavam familiarizadas com o sistema de cavernas. Pelo jeito, porém, o labirinto continha inúmeros corredores ainda desconhecidos para elas, estendendo-se muito mais fundo do que poderiam ter imaginado.

Elas levaram doze horas para encontrar a garota, que deixou Aretuza no dia seguinte. Para nunca mais voltar.

Kalena me disse que encontrara Zoriyka enquanto Klara Larissa de Winter, a fundadora e diretora da escola, a levava para fora pelo portão da frente e colocava-a numa carruagem. Ela disse que a garota estava muito longe da personalidade alegre normal — seu rosto estava mortalmente pálido, os olhos estavam vidrados como se ela estivesse perdida num transe profundo. Quando Kalena lhe perguntara como estava, a garota a ignorara completamente. Ou simplesmente não a ouvira... Como Kalena dissera, a garota estava entre petrificada e paralisada.

Ainda penso naquelas cavernas de vez em quando, sobre o que poderia ter acontecido com a garota nas entranhas de Aretuza — ou o que ela vira. As professoras, inclusive minha tia, se recusaram a falar sobre a situação e davam uma bronca em qualquer pessoa que trouxessem o assunto à baila. Só o que eu sabia então, e ainda agora, é que, logo depois que Zoriyka deixou a escola, a Senhora de Winter ordenou que todas as entradas conhecidas para as cavernas fossem fechadas indefinidamente. E nunca mais enviaram adeptas para procurar cristais no escuro.

Capítulo 4

Aqueles que me conhecem sabem que prefiro uma abordagem prática. Sempre gostei de teoria e sempre fui muito boa nisso, mas nada se compara a fazer uso construtivo do conhecimento e do talento. Durante todo meu tempo em Aretuza, foi Nina Fioravanti, a Senhora da Terra, que, acima de todas as outras, instigou em mim o apreço pelo prático.

A Terra é um elemento razoavelmente difícil de aprender e sempre respeitei os que o dominam... que eram, e ainda são, um número muito pequeno. A dificuldade provém de sua ineficiência, pois o Poder que reside nela, de forma muito parecida como a Terra em si, é estagnado. Ele não flui ativamente, como a Água, o Ar e o Fogo, e não consegue se mover com facilidade de um lugar a outro, nem sob o controle de uma mão mágica. Em suma, é necessário uma quantidade incrível de energia e, portanto, é impraticável, especialmente para adeptas inexperientes.

Depois de um ano de nada além de Água (e algumas aulas de Ar), fomos consideradas prontas para aprender os fundamentos de Terra. Eu tinha me preparado para alguns meses de teoria introdutória, como era o costume, mas fiquei agradavelmente surpresa quando Nina, em nossa primeira aula, nos levou a um sítio arqueológico próximo para auxiliar numa escavação. Essas excursões continuaram por boa parte do mês e a coisa mais peculiar era que não usávamos nenhuma magia. Dia após dia, cavamos trincheiras, vasculhamos a terra e categorizamos quaisquer objetos que encontramos. Em sua maioria, desenterramos ossos pequenos da vida selvagem local e, às vezes, uma moeda ou uma quinquilharia sem valor.

Anos depois, fiquei sabendo que não descobrimos nada digno de nota porque toda a empreitada era uma farsa — pelo menos aparentemente. Nina usara o mesmo local — que não tinha nenhum significado histórico — com todas as turmas a quem lecionada desde que Aretuza abrira as portas ilustres para negócios. Soube dessa fraude pela própria Nina anos depois, quando eu estava no quarto ano, durante uma de nossas reuniões particulares.

Pelo jeito, Nina gostara de mim desde a primeira escavação porque, sem hesitação nem questionamento, eu pulara imediatamente para a tarefa à mão. Diferentemente das outras garotas, não reclamei nenhuma vez da situação, mesmo depois de ter arruinado quase todas as minhas roupas com manchas e rasgões. E ela se lembrava disso. Foi por isso que, anos depois, ela me recrutou para uma missão especial que descreveu como “extracurricular” e fez-me prometer que manteria segredo das outras garotas (acho que contei a Kalena quase imediatamente — desculpe, Nina). Obviamente, eu, que queria ser um prodígio, agarrei a oportunidade de ganhar créditos extras. (Como eu era bajuladora naquela época.)

No fim das contas, as responsabilidades de Nina iam muito além do elemento de terra e detritos. Durante anos, ela estivera encarregada de solucionar um problema em particular que emanava de Tor Lara. No topo da torre, residia um portal famoso e notoriamente instável, que ninguém usava porque isso quase sempre, como diziam as histórias, resultava em morte. Na verdade, a torre inteira era completamente proibida para todas as alunas. Pelo jeito, o portal emitia um campo mágico forte que interferia na magia próxima e até o feitiço mais comum lançado perto da torre poderia ser transformado em algo errático e perigoso. Portanto, Nina estivera lentamente imbuindo as fundações de Tor Lara e o palácio de Garstang próximo com uma aura única que, depois de totalmente implementada, suprimiria toda a magia nos arredores. Afinal de contas, para transformar feitiços, é preciso conjurá-los. Na verdade, era um feito inacreditável de engenharia mágica, especialmente para a época.

Meu trabalho era ajudar com a pesquisa geral, auxiliar com o processo de imbuir e obter quaisquer itens de que a senhora precisasse. A palavra “lacaia” poderia se usada, mas não me importei. Apesar de o trabalho propriamente dito não ser nada empolgante, o segredo e a importância da tarefa me deixaram empolgada e fizeram com que me sentisse especial. Além do mais, eu precisava de validação e aquela era uma forma segura de obter o favor de Nina.

Foi durante uma das noites no palácio de Garstang que descobri o esquema de Nina com os primeiros anos e as escavações arqueológicas infrutíferas. Ela riu bastante ao expressar como se sentia igualmente entretida e triste por saber que as adeptas, por mais que tentassem, nunca encontrariam nada de importante durante aquelas escavações falsas. Quando eu a questionei, ela destacou a verdadeira natureza das aulas. Sua resposta foi um sentimento que permanece comigo.

“Com bastante tempo e paciência, qualquer um pode mover uma montanha, uma colherada de cada vez.”

Era uma verdade conhecida para todos que buscavam dominar o elemento Terra e uma atitude que Nina queria incutir em suas alunas desde o começo. Na verdade, aquelas excursões não eram para descobrir tesouros escondidos nem segredos há muito perdidos — ao contrário, tal descoberta teria sido prejudicial para a lição que ela queria ensinar. Em vez disso, Nina queria que as adeptas abraçassem o conceito de paciência, trabalho duro e determinação, mesmo quando havia muito pouco a mostrar pelos esforços.

“Uma maga pode passar cem anos melhorando o elemento escolhido e ainda estar a cem anos de o dominar. Se alguém tiver direito a uma gratificação instantânea, a grandeza, receio, nunca estará ao seu alcance.”

Às vezes, eu me lembro dessas palavras e imagino como responderia a elas hoje, depois de todos esses anos.

“Talvez, querida Nina, haja mais na vida do que grandeza...”

Ela provavelmente zombaria disso. Ou riria.

Capítulo 5

Meu momento condutor foi o uso da telecinesia (jogando lixo no venerável Stammelford) e, assim, sempre se supôs que eu seria mais proficiente em Ar e que o dominaria. Verdade seja dita, eu esperava fazer isso (na minha jornada em direção ao domínio total de todos os elementos, naturalmente!).

E, assim, fiquei incrivelmente empolgada em aprender o elemento sob a orientação da distinta feiticeira Agnes — ou Agnes de Glanville, Senhora do Ar, para sermos formais, o que ela sempre era. Além da minha tia, Agnes era alguém que eu conhecia razoavelmente bem. Desde que consigo me lembrar, ela visitava Aurora com frequência — e, por extensão, a mim — e era uma presença comum durante a minha infância. Alguém poderia argumentar que meu treinamento começara muitos anos antes de eu pisar em Aretuza. E, considerando todas as lições “espontâneas” e anedotas perspicazes que eu recebera no lugar de Agnes e Aurora, seria uma base sólida de argumento.

Não havia dúvidas sobre isso: eu tive uma infância privilegiada. Eu era relativamente feliz, saudável e nada me faltava — deixando de lado a vontade de ir para Aretuza. Ainda assim, em retrospectiva, a principal bênção do meu privilégio provinha do acesso constante que eu tinha a duas das mulheres mais proeminentes no mundo da feitiçaria. Praticamente nenhuma outra criança de seis anos poderia ter-se gabado de parentescos tão ilustres. Não pretendo desrespeitar minha tia quando digo isso, mas, enquanto Aurora era — e ainda é — muito respeitada e um tanto famosa, Agnes era de longe a figura mais eminente. Veja bem, ela é uma lenda viva.

Num passado não muito distante, todos os magos eram homens — um fato que não surpreende ninguém. Na verdade, havia mulheres que conseguiam dominar o poder dos elementos, mas eram chamadas principalmente de “curandeiras” e “herboristas”, não sendo consideradas como nada além disso. Ser um feiticeiro humano era um status protegido e apenas alguns (homens) selecionados eram oficialmente reconhecidos por seus pares (homens) como tal.

Então veio Agnes.

Pelo jeito, ela inadvertidamente evocara um redemoinho feroz em seu evento condutor numa idade muito tenra. Como diz a história, o redemoinho rapidamente se transformou numa tempestade que reduziu uma pequena aldeia costeira a escombros. Eu acreditava piamente que essa história era, no mínimo, exagerada, mas nunca dissera isso em voz alta. Mesmo assim, logo se espalhou a notícia sobre a “criança milagrosa”, chegando finalmente aos ouvidos de Giambattista — um dos arquitetos do Grupo Novigradiano, juntamente com seus colegas Jan Bekker e Geoffrey Monck. Ansioso para localizar e identificar condutores de Poder (ou “Fontes”, como ainda são chamados), Giambattista procurou a garotinha, pagou muito bem à mãe pela vida da criança e sujeitou-a a seus testes mágicos — o que mais tarde seria implementado como requisitos de admissão para Ban Ard.

Diferentemente de todas as outras crianças testadas antes da garota, Agnes maravilhou o mago com suas capacidades inatas — ela me garantiu, em inúmeras ocasiões, que ele realmente ficou “maravilhado”. Ela ficou sob as asas de Monck, Bekker e Giambattista, que a doutrinaram nos fundamentos de magia.

Logo depois, Monck reuniu algumas das crianças talentosas, que eram chamadas de “Escolhidas”, e dentre as quais Agnes era a única garota. Depois, ele velejou de Aevon y Pont ar Gwennelen — hoje chamado mais comumente de Pontar — para Loc Muinne, onde convenceu os elfos feiticeiros a ensinar aos jovens os caminhos das Raças Anciãs. Assim, a fama de Agnes ficou assegurada, pois ela se tornou a primeira mulher (bem, garota) a obter o status de Feiticeira — ou “Encantadora”, como ela diz.

E é praticamente tudo o que sei sobre o assunto. Pedi a Agnes em inúmeras ocasiões que me contasse uma história sobre o tempo que passara com os Sábios das Montanhas Azuis, mas, ao ouvir o pedido, ela sempre ficava distraída e desviava do assunto com “outro dia, talvez”. Não sei por que ela reluta tanto em relembrar aquele período de sua vida, mas estou decidida, na próxima vez em que nos encontrarmos, a fazê-la me contar uma ou duas histórias — talvez uma bebidinha ajude a soltar-lhe a língua...

Como eu dizia, com a influência de uma mulher dessas — e da minha tia também! — na minha orientação, é possível entender por que colocaram expectativas tão grandiosas sobre os meus ombros pequenos e inexperientes. O fato de eu não dominar a magia... ora, era simplesmente inaceitável e não havia desculpas. “Desperdiçar o seu potencial é uma afronta a todos os menos afortunados”, dizia-me Aurora com frequência. “Você tem o luxo de ter opções, portanto, escolha a correta.”

Assim, persegui a grandeza implacavelmente, pois era a minha obrigação.

Ou, como eu diria agora, meu fardo.

Capítulo 6

Apesar dos inúmeros usos benéficos, não há como negar que a magia é perigosa, especialmente nas mãos de um mago inexperiente e especialmente ao ligar com Fogo — o mais imprevisível e caótico de todos os elementos. Na verdade, a maioria dos adeptos deveria ficar longe dele em nome da própria segurança e da quem estiver por perto. Ora, para quem não está disposto a aguentar muita dor, dominar o Fogo é a última coisa que se deveria perseguir. Essa foi uma verdade que aprendi imediatamente durante nossa primeira lição com Klara Larissa de Winter, a Senhora do Fogo e reitora de Aretuza.

Era uma mulher fria — irônico, eu sei — e indiferente e passava o mínimo possível de tempo com as adeptas mais novas. Superficialmente, seria fácil alguém cometer o erro de achar que Klara não tinha apreço pela profissão que exercia, mas nada poderia estar mais longe da verdade. Era frequente as pessoas ficarem surpresas ao descobrir que De Winter era, na realidade, a fundadora da escola e que se importava profundamente com a imagem do estabelecimento. Ela acreditava — e com razão — que homens e mulheres deviam receber apoio igual e que, se os homens tinham Ban Ard como escola dedicada a desenvolver as habilidades dos aspirantes a magos, as mulheres também deveriam ter uma. E, assim, nasceu Aretuza.

Quando finalmente chegou o momento de conhecê-la, Klara foi excepcionalmente direta e a indiferença anterior se tornou abundantemente clara. Durante nossa primeira lição sobre Fogo, ela nos disse que não tinha tempo para alunas que não fossem excepcionais e que seria tutora apenas da melhor e mais inteligente. “Uma de vocês...”, dissera ela, cerrando o maxilar e olhando-nos com os olhos gelados e penetrantes. “Vou aceitar uma de vocês. E só.”

Como se pode imaginar, eu estava determinada a ser a escolhida — eu tinha que ser! —, mesmo depois de a Senhora de Winter tentar acabar com nossas ilusões sobre o elemento:

“Vocês se queimarão. Muitas vezes. Vocês aguentarão a dor e o sofrimento. E, a cada vez que chamarem o poder do Fogo, dançarão com a morte, pois o Fogo tirou a vida de muitos magos, tanto amadores quanto experientes, e também tirará a de vocês se não ficarem atentas.”

Ela não estava errada. É até fácil canalizar o Fogo, mas isso está longe do desafio de manejá-lo. Sua natureza errática, combinada com a quantidade incrível de energia que ele contém, frequentemente resulta em um mago num surto de Poder esmagador. E tal surto é impossível de controlar. No decorrer dos anos, muitos magos foram devorados pelas chamas e queimados vivos devido à sua incapacidade de parar o processo. Alguns sobreviventes descreveram o momento antes do caos e da destruição absolutos como puro êxtase, com alguns professando sem vergonha alguma o desejo de sentir tal poder novamente, mesmo que lhe custasse a vida e ferisse aqueles à sua volta. Acho que, com grande poder, vem o potencial para grande corrupção...

Mas, claro, eu ainda queria muito dominar todos os quatro Elementos Primários e a admoestação de Klara não me dissuadiu — pelo menos não até ficar claro o pré-requisito para participar da aula dela. Foi a primeira vez que eu a vi sorrir. Um sorriso sinistro, é verdade. De forma muito lenta e precisa, ela estendeu a mão e virou a palma para cima. Em seguida, disse calmamente:

“Quem conseguir pegar minha mão será considerada para a posição.”

Ao terminar de falar, ela fez um gesto peculiar com os dedos. A mão dela começou a brilhar em vermelho e laranja. A pele encheu de bolhas, queimou e ficou preta ao derreter com o fogo. No lugar da pele antes delicada e branca, havia agora cinco dedos derretidos e queimados.

O desafio era claro.

“Se alguém quer brincar com fogo, deve estar disposto a queimar.”

Ninguém se mexeu. A maioria das garotas nem mesmo respirou por alguns segundos. Não achei que alguém teria conseguido imaginar aquela aula introdutória.

Eu não teria culpado as outras garotas por acharem que talvez fosse algum tipo de truque. Um trote para quebrar o gelo. Mas eu sabia que não era. Vi isso nos olhos de Klara: era estava falando mortalmente sério e era aquela dedicação que exigia. Portanto, não tive opção: eu tinha que agir. Devagar, andei na direção na mão queimada e estendi a minha mão de forma lenta e deliberada. Naquele momento, esperei que o gesto fosse suficiente, que a Senhora de Winter só exigia prova da intenção.

Mas ela ficou imóvel, com os olhos vidrados e sem emoção fixos em mim. Esperando...

E só havia uma coisa que eu podia fazer...

Fechei os olhos, segurei a mão dela com força e gritei.

Capítulo 7

Os Quatro Reinos têm duas escolas importantes para magos. A Escola para Feiticeiros Ban Ard, em Kaedwen, e a Escola para Feiticeiras Aretuza, em Temeria — talvez, algum dia, não haja necessidade da segregação de sexos, mas, por enquanto, é assim que as coisas são. Como qualquer pessoa que sabe o mínimo sobre a natureza humana, houve uma rivalidade crescente entre os estabelecimentos desde sua concepção.

Os tutores das duas escolas se encontram regularmente para discutir questões importantes sobre magia e seu uso e estão cada vez mais interessados na situação política dos Reinos do Norte. Porém, o motivo principal dessas reuniões é fofocar e gabar-se dos diversos sucessos da academia correspondente. Conheci muitos dos garotos de Ban Ard e deixarei a humildade de lado para declarar abertamente que, pelo lado acadêmico, as garotas são melhores do que os garotos em quase todos os anos. Ainda assim, a verdadeira competição não está nos exames e avaliações — ah, não! Os ex-alunos das duas escolas sabem muito bem que os direitos de se gabar são do vencedor anual do Confronto do Caos — oficiosamente chamado assim pelos alunos.

A cada ano, as duas escolas se encontram para uma demonstração — ou, bem, confronto — de proficiência acadêmica e física, em que o lugar de honra de anfitrião é ocupado pelo vencedor do ano anterior. Perdi a conta de quem ganhou mais vezes, mas posso dizer uma coisa com certeza: é muito próximo. Para qualquer garota de Aretuza, esse fato traz muita alegria, pois é bem sabido como os garotos levam a competição a sério. Tanto que eles priorizam o treinamento para o Confronto acima de todos os outros estudos acadêmicos, o que provavelmente explica por que Aretuza frequentemente se sai melhor nesse aspecto.

Além do uso da magia, não há nada de extraordinário na ocasião, pois tenho certeza de que eventos similares ocorrem em todo o mundo, já que a maioria das pessoas gosta de uma boa competição. Do jeito como as coisas são, durante três dias as escolas se envolvem em várias atividades e eventos, variando da criação de poções e da solução de problemas a cursos de obstáculos e duelos — sendo estes o evento mais prestigiado e que marca o fim dos jogos. Depois, os pontos são computados, o vencedor ganha o Troféu do Dom e da Arte (ou a “Copa do Confronto”) e as escolas passam a noite festejando, dançando, brincando e comemorando — ou consolando. Verdade seja dita, é um dos momentos mais empolgantes do ano e sempre houve uma grande agitação nas semanas anteriores ao evento quando eu ainda era aluna — e tenho certeza de que ainda há.

Apesar de a maioria dos alunos participar do Confronto de alguma forma, já que o trabalho em equipe é parte fundamental da experiência, o evento principal tende a dominar a cena. E isso, como dita a tradição, é um confronto entre um de cada lado. Naturalmente, a aluna mais proeminente é selecionada para representar a escola como Victrix de Aretuza (ou Victor de Ban Ard) e os dois adeptos se enfrentam num duelo empolgante, apesar de meio perigoso. O vencedor desse confronto final recebe um grande número de pontos e o resultado dessa partida normalmente, mas não sempre, corresponde ao vencedor geral. Como se pode imaginar, é uma pressão tremenda para os duelistas.

No meu terceiro ano em Aretuza, a Senhora de Winter me escolheu para representar a escola, para decepção de Yanna, que participara como Victrix nos dois Confrontos anteriores. Eu testemunhara a raiva de Yanna em inúmeras ocasiões, mas nunca a vira ranger os dentes como quando foi anunciado que eu representaria a escola na final do torneio. “Como ELA pode ser a face de Aretuza?!”, gritara ela. “Ela nem mesmo foi embelezada!”

E ela não estava errada. Eu não fora. Ainda tinha todas as imperfeições que me tornavam... bem, eu. Para a confusão das minhas colegas de classe, eu nunca acalentara a ideia de alterar magicamente a minha aparência e, portanto, recusara-me a participar do processo de embelezamento.

Yanna, no entanto, fizera isso na primeira oportunidade. Eu não a vira antes do processo, mas diziam que, antes da mudança, ela tinha sardas por toda parte e dentes tortos. Ao olhar para ela, era impossível imaginar tal coisa. A pele pálida agora parecia porcelana, o sorriso era perfeito e os cabelos ruivos sempre caíam da forma certa para emoldurar o rosto belo e simétrico. Em resumo, o processo erradicara todas as imperfeições perceptíveis. (Eu me pergunto como ela pareceria sem as “melhorias”... Ainda bonita, imagino. Só que de forma mais natural.)

Até mesmo Kalena, que normalmente apoiava excessivamente minhas escolhas, me perseguira por dias tentando me convencer a tentar. Mas eu gostava de ser eu mesma. E gostava de olhar para o espelho e ver-me olhando de volta, não alguma estranha glamorizada imitando meus movimentos. Portanto, recusei o processo — e eu poderia alterar minha aparência depois se mudasse de ideia, por isso não entendia qual era o problema.

Ainda assim, todas as reclamações de Yanna pouco fizeram para mudar o curso dos eventos. Eu fora selecionada e Klara não era o tipo de mulher que reconsiderava as próprias decisões, e certamente não por causa de um chilique de uma aprendiz. E era isso. Eu enfrentaria o melhor aluno e Ban Ard no torneio do Confronto do Caos anual.

Na época, eu estava tão confiante nas minhas habilidades que, de verdade, a ideia de perder nunca me passou pela cabeça, nem por uma fração de segundo.

Acredito que chamam isso de arrogância.

Capítulo 8

A final daquele Confronto do Caos em particular foi talvez o momento mais constrangedor de todo o meu tempo em Aretuza — mas, infelizmente, não o mais perturbador. Enfrentei um garoto de baixa estatura chamado Gereon, cuja personalidade eu só poderia descrever como oleosa. Não me lembro de ter visto aquele sorriso arrogante sair do rosto dele, nem mesmo por um único momento.

Obviamente, de todos os garotos para quem eu poderia ter perdido, tinha que ser ele!

Eu fora extensamente treinada nas semanas antes do Confronto pela própria Klara, o que compreendia sessões diárias individuais além das aulas normais. Até Yanna se ofereceu para me ajudar a me preparar quando Klara tinha outras coisas a fazer. “Não quero que a Victrix de Aretuza faça de boba a escola que ela representa”, dissera ela num tom até então desconhecido para mim — encorajador e quase amigável. Depois que a raiva dela esfriou ou, pelo menos, diminuiu, ela foi prestativa e dedicou muito de seu tempo livre. Mas todos os conselhos e a ajuda extra pouco fizeram para me preparar para o confronto que me esperava.

Gereon, para surpresa de todos, usou magia que não fora usada em nenhum dos jogos anteriores. No fim das contas, ele era excelente em construir ilusões e usou truques visuais para me desestabilizar completamente. Momentos depois do início do duelo, fiquei diante de várias cópias de Gereon — pelo menos uma dúzia — e não tinha a menor ideia de qual era a real. Fiquei parada, em frente a uma multidão de expectadores de Aretuza e Ban Ard, totalmente confusa, com os olhos passeando pelas inúmeras faces que tinham exatamente o mesmo sorriso arrogante. E todas com a mesma risada, que ecoou à minha volta, zombando enquanto eu atacava — e errava — repetidamente, sem conseguir localizar o Gereon correto.

Logo fiquei cansada e sem energia e transformei-me em alvo fácil para o garoto. Com um jato de ar rápido, o Gereon real me lançou no ar contra uma coluna de pedra, tirando o ar dos meus pulmões e deixando-me imponente. E, bem, foi o fim. Gereon foi coroado Campeão, Ban Ard venceu o Confronto do Caos por uma margem insignificante e eu fui deixada para me afogar em autopiedade e confusão, com o coração partido e muito envergonhada de mim mesma.

“Sempre espere o inesperado.” Foram as únicas palavras trocadas entre Gereon e mim. Ele as dissera enquanto me ajudava a levantar depois do torneio, com o lábio curvado para um lado e a sobrancelha erguida de forma presunçosa. Não dei muita atenção àquelas palavras na época... e ainda não dou. Afinal, como alguém pode se preparar para o desconhecido? Não faz sentido! (Mas talvez eu não devesse ter sido tão presunçosa antes do duelo, talvez fosse isso o que ele quisera dizer. Considerando o comportamento dele, isso teria sido terrivelmente irônico.)

Não participei do banquete pós-torneio naquela noite. Eu estava muito abatida e escondi-me nos meus aposentos. A ideia de enfrentar um salão cheio de garotos zombeteiros de Ban Ard me deixou ansiosa e enjoada, mas a ideia de enfrentar um salão cheio das colegas que eu decepcionara me fez sentir abominável. Depois da cerimônia de encerramento, também evitei tia Aurora, aterrorizada com o que ela poderia me dizer. Imaginei o tom que ela usaria: “Não estou chateada, querida Alissa: só estou... decepcionada.” A ideia me apavorava totalmente. (Na verdade, ela me ofereceu muito conforto quando finalmente nos falamos — percebi que situações como essa eram muito piores na mente do que na realidade.)

Apesar de Kalena — conforme descobri mais tarde — estar paquerando um dos alunos de Ban Ard, ela desistiu da paquera no momento que percebeu que eu não aparecera para a comemoração. Em vez disso, ela localizou o meu paradeiro e passou a maior parte da noite reconfortando-me. Bem, pelo menos no começo. Mas, depois, meu choro incessante a deixou frustrada ao ponto em que ela fez algo totalmente inesperado. Ela me recriminou.

“Ora, cresça, sua boba. Sua tia nunca lhe disse que você não pode ser a melhor em tudo na vida? Poxa, a maioria não consegue nem ser melhor em nada. Você é habilidosa demais para sua idade, admito. É inteligente e determinada. E sabe muito sobre o mundo... sobre magia. Mas é vaidosa demais e, ouso dizer, acha-se cheia de direitos. Talvez você fique chocada ao descobrir que o mundo não gira ao seu redor. Por um momento, só por um momento, pare de tentar impressionar, de tentar provar seu valor para todo mundo e tente apenas... ser. Tente ser feliz. Pois toda a grandeza e os elogios no mundo não significam nada se você não está feliz.”

Foi a primeira vez que fui pega de surpresa por algo que Kalena dissera. E eu nunca, nunca esperei receber algum tipo de sabedoria dela. Mas... lá estava. Inegavelmente claro.

Depois de me dar um momento para processar a reprimenda, ela me convenceu a acompanhá-la até o salão onde as comemorações estavam a pleno vapor. Ela foi atipicamente persuasiva e eu a segui sem pensar duas vezes. E sabem de uma coisa? Ninguém zombou de mim. Ninguém me culpou. Ninguém estava chateada — exceto eu, inicialmente. Na verdade, acabei tendo uma das melhores noites da minha vida.

Eu não sabia disso na época, mas aquela conversa com Kalena foi um ponto de inflexão para mim. Pela primeira vez na vida, realmente pensei em quem eu era e, mais importante, quem queria ser, independentemente das expectativas alheias. Pela primeira vez, questionei meu “destino”.

Capítulo 9

Jan Bekker, o Mestre dos Elementos, aparecera em Aretuza muitas vezes durante minha estada lá, principalmente para participar das Copas do Confronto — para apoiar os rapazes de Ban Ard, naturalmente. Certo ano, porém, após uma vitória esmagadora de Aretuza, ele decidiu prolongar sua visita e dar aulas na escola por um semestre. Em seu discurso de abertura, ele declarou que testemunhara uma quantidade enorme de potencial em algumas das meninas e, para ajudá-las em sua “busca pela grandeza”, ofereceria uma série de palestras inspiradoras. Eu, no entanto, acreditava piamente ter sido mero estratagema, e ele estava realmente avaliando as professoras — talvez na esperança de aprender como elas eram capazes de disciplinar e nutrir suas alunas, que eram um contraste gritante com os meninos indisciplinados de Ban Ard — como isso ainda se observa, parece que seu reconhecimento falhou de alguma forma.

Para os que não estão familiarizados com o mestre Bekker, sua ideologia geral e abordagem da tutela mágica se resumem em um trecho de seu discurso de abertura, que ocupou quase vinte folhas de pergaminho durante minhas anotações:

“Quem não consegue expandir os limites do possível falhou no Dom e na Arte. Lembrem-se disto: é nossa obrigação buscar a grandeza, alcançá-la, traspassá-la e formar um novo padrão de excelência a ser superado por nossos predecessores. Como magos, algo menos que isso é simplesmente inaceitável, e é nosso dever responsabilizar nossos colegas por toda e qualquer deficiência. Somente juntos, através da força e da solidariedade, podemos esperar alterar a forma de nossa realidade para a melhoria de todos…”

Como se pode ver, ele era um homem muito intenso, mas ainda está para surgir alguém que realize as suas proezas. Apesar de tudo, absorvi na época cada palavra, pois o sentimento reforçava o que minha tia já me ensinara. Ainda assim, despertou em mim o que agora refiro como um momento de tremenda fraqueza e prioridade distorcida. Com as palavras sábias do mestre Bekker ressoando em meus ouvidos, eu estava convencida de que precisava seguir seu conselho em sua totalidade e decidi — tolamente — cumprir meus “deveres” como maga e confrontar minha melhor amiga Kalena sobre suas “deficiências”. (Puxa, estou até envergonhada de escrever essas palavras.)

Por isso, sentei-me com ela e disse que ela precisava se superar, que ela devia prestar mais atenção, concentrar-se mais e esforçar-se mais para superar suas falhas — que, segundo minha rudeza, eram muitas. Lembro-me da expressão em seu rosto. Não era de aborrecimento nem zanga. Longe disso, aliás. Ela até aceitou muito bem minha enxurrada de baboseiras condescendentes. Sua expressão, ao que parecia, estava mais próxima da surpresa do que de qualquer outro sentimento: ela só estava surpresa que sua melhor amiga pudesse tomar uma postura tão pretensiosa e falar com ela daquela forma — quisera eu nunca o ter feito.

Em vez de discutir ou retaliar, como lhe era de direito, ela simplesmente tentou explicar seu ponto de vista:

“Eu quero viajar pelo mundo, conhecer pessoas, ajudá-las. Eu não me importo com grandes conquistas nem em ultrapassar os limites da ciência e da descoberta. Fico feliz em deixar essas ambições para os ambiciosos: você, o mestre Bekker, Yanna e todo o resto. Tenho força mais do que suficiente para fazer muita coisa boa, para ajudar pessoas que realmente precisam. E eu vou, já me decidi. Em breve viajarei pelo mundo como dwimveandra e ajudarei todos os necessitados com cujos caminhos eu cruzar. E sabe o que mais? Acho que nunca vou voltar…”

Às vezes, o destino tem uma maneira terrivelmente irônica e cruel de interpretar os desejos alheios.

“… Acho que nunca vou voltar…”

Essas palavras ainda me assombram, ecoando em minha mente sempre que estou sozinha, que paro para refletir sobre o passado. É um lembrete constante de que fui eu, com minhas ações e minha estupidez, quem fez aquelas palavras se tornarem realidade da pior maneira possível.

Capítulo 10

“Somos tão fortes quanto nosso elo mais fraco. Portanto, precisamos nos cercar de pessoas do mesmo calibre que nós — iguais em bravura e promessa —, pois ninguém consegue voar carregando peso morto.”

Outra das máximas de Bekker, em todo o seu pseudoconhecimento e glória distorcida. E isso acabou se tornando a partícula de sabedoria que transformou minha amizade com Kalena num momento irreversível de arrependimento e desespero absoluto.

“Sinto muito, Kalena, mas não podemos mais ser amigas.”, disse-lhe com severidade. Estoicamente.

Mas não foi o que eu quis dizer — de verdade. Eu só pretendia usar isso como uma forma de… motivá-la — chantagem emocional, sim, eu sei disso agora. Ela aceitou meu discurso retumbante, portanto não esperava que ela tivesse uma reação tão dura ao meu estratagemazinho bobo. Mas essas palavras… acabaram atingindo-a com força.

“Você quer deixar Aretuza? Então vá! O que está esperando? Não queremos você aqui, mesmo!”

Novamente, eu não quis dizer aquilo. Eu estava apenas irritada, agitada, agressiva e muito segura de mim mesma — como, suponho eu, ficamos em meio a uma discussão. Trocamos mais umas palavras acaloradas, mas eu não me importo em me aprofundar em nossa discussão. Puxa, acredito que regredi feio, o que provavelmente é para melhor, pois tenho certeza de que uma lembrança intrincada assim faria a memória arder ainda pior do que agora. O término de tudo, no entanto, é simplesmente inesquecível.

Kalena, incapaz de entender minha frieza, começou a chorar e fugiu. Por motivos que certamente eu nunca saberei realmente, ela fugiu para Tor Lara — talvez porque sabia ser proibido e, consequentemente, ninguém estaria lá para incomodá-la.

Então, cometi um último erro…

Sem querer que a situação perdurasse, eu a segui. Confrontei-a. Encurralei-a, acho. Ela, porém, não queria falar. Queria ficar sozinha. E tinha precisamente um caminho a percorrer para se afastar de mim: para cima, até a câmara superior da torre, onde estava o notório portal. Mesmo assim, eu a persegui. Mesmo assim, eu não a deixei em paz. Mesmo assim, eu a direcionei para sua única maneira de escapar de mim…

Antes que eu pudesse impedi-la, ela ativou o portal e, sem titubear, entrou na luz distorcida e rodopiante para o vasto e cósmico caos além.

Num clarão ofuscante, ela se foi. Para sempre.

Ninguém sabia que destino a esperava do outro lado daquele portal abandonado. Disseram que ela provavelmente estava morta, dividida em um milhão de fragmentos dispersos entre os planos. Outros presumiram que ela chegara a alguma terra distante e inóspita, longe de casa e com pouca ou nenhuma esperança de sobrevivência. No entanto, claro, ninguém tinha certeza. Não conseguimos descobrir o que tinha acontecido e não havia absolutamente nenhuma maneira de persegui-la — nem se Winter tivesse sancionado uma aventura tão arriscada, o que ela certamente não fez —, já que o portal era instável e imprevisível. A única coisa com que todos concordamos era que Kalena partira e, à medida que os dias viraram semanas, depois meses, depois anos, a triste verdade tornou-se dolorosamente clara para todos: ela jamais voltaria.

No entanto, em toda a tristeza seguinte a esse evento, um vislumbre de esperança finalmente apareceu.

Alguns anos depois de Kalena passar pelo portal distorcido, um pequeno grupo de anciãs de Aretuza — eu inclusive — aventurou-se a uma pequena vila em Ellander para fornecer ajuda, junto com algumas sacerdotisas do Templo de Melitele. Uma doença mortal acometeu os moradores e aqueles que não podíamos curar — a magia não é infalível — deveriam ficar o mais confortáveis possível em seus momentos finais.

Um dos moribundos que atendi me contou que uma maga viajante — que nós chamamos de “dwimveandras” — passara por ali no ano anterior e permaneceu por alguns dias para ajudar os habitantes locais em seu trabalho — plantar, tosquiar ovelhas e coisas assim. Ele a descreveu como uma das pessoas mais amigáveis que já tivera o prazer de conhecer e, embora não conseguisse lembrar o nome dela, estava convencido de que começava com “K” (“Kayden, Kayla, Keena ou algo assim”, disse ele).

Pronto.

Era mais do que suficiente para me dar esperanças.

Claro, eu sabia que as chances de ser Kalena eram muito pequenas, mas antes pouco do que nada. E então me consolo com a possibilidade de que minha amiga ainda esteja por aí algures, seguindo seu sonho: ajudar as pessoas por onde quer que passe, mudar o mundo não por grandes feitos, mas por gestos humildes de generosidade e bondade, uma ação de cada vez — sendo Kalena, essencialmente.

Se realmente for isso, — e espero desesperadamente que seja —, talvez, e apenas talvez, nossos caminhos um dia voltem a se cruzar e eu finalmente acerte as coisas entre nós.

Eu ficaria muito feliz.

Capítulo 11

Minha semana final em Aretuza chegou muito mais cedo do que o esperado. Principalmente porque abandonei a escola. (Uma decisão que ainda defendo hoje em dia, se você estiver imaginando).

Em retrospecto, fora algo que se avizinhara havia muito tempo.

Inicialmente, eu ficara cega por uma visão predeterminada sobre como seria o sucesso. Minha tia me dissera o que eu seria. E eu tentara, com toda a força de vontade, me tornar aquela pessoa... Durante anos, isso fora toda a minha identidade, e havia um certo nível de conforto naquela constância.

Eu era uma jovem adulta quando comecei a questionar o que realmente queria da vida. O que me daria alegria? Uma sensação de preenchimento? Qual eu queria que fosse o meu legado? Na noite das celebrações do Confronto do Caos, Kalena plantara a semente de dúvida sobre minhas aspirações e, mais tarde, com as palavras de despedida, instigara em mim o desejo de repensar e, no fim das contas, realinhar meus objetivos. Refletindo sobre a visão dela de se tornar uma dwimveandra, lentamente acalentei a ideia e comecei a entender por que perseguir tal finalidade era atraente. Era uma vida que oferecia liberdade, aventura e uma chance de fazer o bem todos os dias. Pensar nela me enchia de um calor desconhecido — uma sensação agradável — e imaginar-me vivendo uma vida assim era uma visão cada vez mais atraente.

Por falta de um termo melhor, eu fora preparada, pronta para um momento climático de clareza. Ainda assim, não foi até meu ano final que esse momento chegou e abracei verdadeiramente a tão esperada mudança de sentido. E o empurrãozinho final de que eu precisava, no fim das contas, veio de uma fonte muito improvável.

Como sênior dos escalões superiores da hierarquia estudantil — ou, bem, algo parecido com isso —, eu recebera como par uma das novas adeptas para agir como mentora dela durante o período introdutório de seu primeiro ano. Era obrigatório e uma forma de preparar as futuras formandas para a possibilidade de um dia se tornar uma Senhora de Aretuza. Eu fora encarregada de orientar uma garota magra, com olhos de corça, chamada Skylark. E, ao conhecê-la, rapidamente percebi o quanto minhas paixões anteriores tinham erodido durante meus dias de escola. Para começar, ela estava muito entusiasmada com o Dom e a Arte, e extremamente apaixonada pelos princípios que orientavam a nossa instituição mágica. Além disso, ela era a garota mais certinha que eu já conhecera — dentro e fora de Aretuza. Por exemplo, durante uma de nossas muitas sessões de estudo, ela disse uma vez: “Se a magia é caos, então faz sentido que todos que a empunhem sejam metódicos. Para evitar a anarquia.” (Acredito que foi naquele momento que eu soube que ela se tornaria uma Senhora de Aretuza e, talvez, até mesmo Reitora — e eu não estava errada.)

Acho que se pode dizer que aquela garota despretensiosa foi um golpe de misericórdia nos restos do meu eu do passado, o golpe final que cortou as amarras puídas às quais eu me agarrava tão desesperadamente. E assim, com o véu removido e meus verdadeiros desejos claros, eu sabia exatamente o que precisava fazer a seguir.

Surpreendentemente, tia Aurora aceitou bem, relativamente falando, a notícia da minha partida iminente...

“Se alguém aposta numa corrida de cavalos, minha querida, é claro que gritará todos os encorajamentos em que conseguir pensar para torcer pelo garanhão escolhido. Mas de que adianta gritar e uivar para uma égua que não deseja mais competir? Hmm? Particularmente, seria um belo desperdício de fôlego.”

Não sei se entendi completamente a analogia dela, especialmente a parte sobre apostar (em mim?), mas não insisti nessa preocupação. Eu estava feliz com o tom insatisfeito dela — era muito melhor do que a resposta veemente que esperara receber. (Meu comprometimento com os estudos fora hesitante na época e imaginei que minha tia soubesse que havia algo de errado e preparasse para minha revelação iminente).

Porém, ainda estou um tanto chocada com a rapidez com que as coisas mudaram naquele último ano. No que pareceu ser uma reviravolta da noite para o dia, passei de protegida promissora para renegada — talvez tenha deixado de lado a parte em que de Winter tinha “sutilmente” sugerido que eu não era mais bem-vinda nos corredores de sua academia, mas acho que, quanto menos disser sobre aquela conversa em particular, melhor...

E, assim, carregando os poucos pertences que eu tinha, fui embora da minha antes adorada Aretuza e aventurei-me sozinha no mundo para viajar como uma dwimveandra.

E, como era de se esperar... nunca mais voltei.

Capítulo 12

Recentemente, os dias ficaram mais curtos e frios. E, novamente, encontrei-me passando mais tempo do lado de dentro, aproveitando o calor da lareira (bem, quando tenho o luxo de ficar num lugar assim). Isso também significa que, novamente, tenho mais tempo para me sentar e botar minhas anotações em dia.

Negligenciei um tanto os deveres com o meu diário no ano que passou. Depois de concluir minhas memórias, vi-me mais uma vez escorregando para a inconsistência, garantindo para mim mesma que certamente lembraria dos eventos importantes das minhas viagens para recontá-los mais tarde, o que é mais fácil falar do que fazer. Tia Aurora, por exemplo, ficaria muito desgostosa com essa abordagem indolente. Ela sempre destacava a importância da consistência, mesmo quando a pessoa não sentia vontade de fazer alguma coisa — na verdade, especialmente quando isso acontecia. Eu me lembro de ouvi-la dizer que “não podemos confiar só na motivação para atravessarmos os tempos difíceis: queremos comprometimento inabalável, pois só o comprometimento garante a consistência”. Não há como contestar a lógica dela.

Mesmo assim, neste momento, não é o dever que guia a minha mão, mas a motivação. Consigo imaginar o olhar frio de Autora julgando-me do outro lado do continente. Estou inspirada a escrever porque acredito que o dilema em que me encontro simplesmente pede documentação. Parece ser uma questão importante. Bem, é curiosa, para dizer o mínimo e, ouso dizer, nefasta no pior caso (e suspeito verdadeiramente que seja o pior).

Parece que a atitude geral em relação aos magos mudara e não fora para melhor. Alguns meses atrás, fui expulsa de uma vila por um aldeão hostil e um tanto rude. “Não queremos gente da sua laia por aqui — vá embora! Vá embora!”, gritara-me ele antes de lançar um projétil de catarro na minha direção. Fora a primeira vez, desde que partira de Aretuza, que eu encontrava tal animosidade e, infelizmente, não foi a última. Muitas outras comunidades rurais me expulsaram. Até mesmo cidades que eu visitara anteriormente, onde construíra relações e formara amizades, recusaram a hospitalidade normal.

Alguma coisa, evidentemente, estava errada.

Alguns dias antes, no entanto, eu tivera a sorte de encontrar outra viajante na estrada. Era uma jovem barda e, curiosamente, parecia sofrer de algum tipo estranho de feitiço — ou era um trote bobo e ela só estava brincando comigo. Ela alegou que não conseguia dizer uma única palavra sem começar a cantar e rimar. E, depois de ouvi-la gritar estrofe após estrofe, acreditei que a alegação dela era real (obviamente, ninguém continuaria assim se não fosse preciso).

De qualquer forma, viajamos juntas por um dia — ela estava indo encontrar alguém que tinha certeza de que ajudaria a remover a maldição de cantoria. E, durante nosso tempo juntas, ela cantou sobre os eventos que testemunhara numa cidade próxima na semana anterior:

“A vila estava num verdadeiro alvoroço:

Encontraram, um cervo, abatido em um poço,

Arrancaram-lhe os olhos, tiraram-lhe a entranha,

Decerto um ritual de malignidade tamanha.

Por sorte, logo chegaram entendedores,

‘Faremos de tudo pra achar os malfeitores!’

Procuraram tudo, sem descansar um momento,

E acabaram encontrando a fonte do tormento.

Apontaram então uma bruxa e seu perverso intento,

Acuada, submeteu-se então ao julgamento.

Montaram fogueira e nela a moça queimaram.

Trabalho feito, pegaram as moedas e saíram tão rápido quanto chegaram”.

Talvez eu tenha parafraseado um tanto, pois não sou poeta, mas o sentido geral permanece o mesmo.

Durante a minha vida, certamente ouvi histórias de magos, corrompidos pelo poder ou apenas indiferentes ao sofrimento dos outros, que se envolveram em atos moralmente dúbios. E, sim, ouvi histórias de pessoas inocentes feridas durante tais perseguições.

Mas aquilo foi um tanto diferente.

A barda me disse que ouvira muitas outras histórias sobre bruxas traiçoeiras e chegou ao ponto de descrever a situação como uma praga aparente.

Obviamente, não acreditei naquilo nem por um segundo — e, pelo jeito, nem ela.

Temo que alguma coisa esteja terrivelmente errada com essa situação. Não há como os magos ficarem maus em massa. Ora, nem havia magos o suficiente nos Reinos do Norte para popular tais relatórios difundidos, especialmente ali no campo.

Assim, decidi investigar a questão, pois certamente vale a pena investigar.

Até o momento, não tenho muito que possa seguir e, devido às circunstâncias, muitas pessoas, como se pode supor, não querem cooperar. No entanto, tenho uma pista. Um nome que a barda mencionou e que ouvi nas poucas tabernas em que tive a sorte de conseguir acomodação.

É um nome que certamente me levará à origem deste estranho fenômeno — no mínimo, algo tangível que possa perseguir.

O nome é “Hale”.
 
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